sábado, 7 de julho de 2007

Sobre FLIP e Paraty

"Paraty continua a mesma de 25 anos atrás. Isso me faz pensar no quanto eu mudei." Assim começou Alan Pauls, escritor argentino, tido por Roberto Bolaños como o melhor escritor argentino vivo, a sua palestra que eu não assisti até o final porque tive que sair correndo para pegar meu ônibus das 16h20. Tinha certeza que essa seria uma das mesas que eu mais iria gostar. E o gostinho de quero mais, muito mais, da Flip e de Paraty ficou na boca.

Cheguei em Paraty na sexta (o trabalho me impediu de chegar antes) às 8h. Ou seja: duas horas antes da mesa sobre liberdade de expressão & biografias, formadas pelo Paulo César de Araújo (aquele do livro proibido do Roberto, se é que alguém ainda tem dúvidas), Fernando Morais e Ruy Castro. O que fazer, então? Conhecer Paraty. O sol estava começando a aparecer - ainda estava fazendo um certo frio, suficiente para colocar o casaco - e eu fui, andando pela calçada de pedra, com as casas coloridas fechadas, sem rumo algum, fotografando, fotografando, fotografando. (Aproveitei que ainda não estava repleto de gente a cair pelas pedras escorregadias). A primeira impressão é a de estar em um universo paralelo - como se a guerra do alemão e todo a novela renan calheiros & congresso nacional não chegassem lá. Depois
de muito andar, cheguei ao porto, e meia hora fiquei sentada nas pedras, completamente absorvida por aquelas águas.

Quando dei por mim, já estava quase na hora da primeira mesa e saí correndo. Passei pela tenda da Flipinha, e os balões, estrelas e bonecos que compunham a decoração prenderam minha atenção por mais alguns minutos: ah, que cenário lúdico... Saí correndo para a Tenda da
Matriz (não, queridos, não consegui NENHUM ingresso para a Tenda dos Autores, e tive que assistir a tudo pelo telão.) 10h. Primeira mesa: "A Vida Como Ela Foi" - era uma das que mais queria ver, tanto por adorar os livros do Fernando e do Ruy quanto para ver o tão comentado
Paulo César. Primeira observação: o mediador era horrível. Serviu apenas como ilustração do palco, deixando-o completamente aberto para os três escritores de ego grande, bem grande. Não li o livro do Paulo - ele leu um trecho, porém - mas, devo dizer que em nenhum momento ele
discutur liberdade de expressão literária. Falou sobre, mencionou, mas na verdade, ele estava ali para se vender: é um verdadeiro show-man. Começava todas as frases com "eu". Por mais de três vezes disse que "já fazia parte da história nacional". Chorou falando da filha, a quem
dedicou o livro. Contou algumas histórias de sua vida, e lembrou mais três vezes que levou quinze anos para escrever o bendito livro. Conseguiu diversos aplausos da platéia, e muitas gargalhadas. Um verdadeiro show-man. Morais e Castro são arrogantes e ególatras,
exatamente como eu imaginava ser. Morais foi o mais embasado ao falar de liberdade de expressão (o que deveria ser o tema da mesa, certo?): explicou ao público os artigos da Constituição pelo qual está sendo processado, as suas incongruências e divergências. Tornou muito mais claro o delicado processo de escrever uma biografia, juridicamente falando. Obviamente contou suas histórias e levou muitos aplausos do público. Idem Ruy.

Nem para a mesa das 15h, nem para a das 19h consegui ingresso. O que eu realmente queria ver, toda a minha expectativa pertencia à mesa das 17h - Guillermo Arriaga e Davis Lehane. Mas, isso eu conto daqui a pouco.

Eu tinha um grande intervalo: de 12h até às 17h. O que fazer, então? Conhecer mais Paraty! Agora, com suas lojas abertas (aceita-se Visa em todos os lugares, sem exagero) e parecendo um formigueiro. Gente de todo o tipo: mulheres, homens, cariocas, paulistas, mineiros, cearenses, espanhóis, famosos, fotógrafos profissionais e amadores, jornalistas. Uma boa notícia sobre a cidade: ela é barata. Muito barata. Para alguém que, como eu, adora artesanato kitsch, à la
Almódovar, é o paraíso. Comprei diversas peças - muito bem trabalhadas, deva-se dizer, a preços muito baratos. Venho garimpando peças de todas as cidadas pelas quais passo, e para a minha surpresa, esta foi a mais barata. Pelo caminho, passei diversas vezes por um
saxofonista - e deus, como eu adoro sax - maravilhoso. Um harpista e um violonista também estavam lá, e o mais incrível era que as músicas não discordavam entre si. Formavam um conjunto único, uma sinfonia compassada de músicas diferentes. Fiquei me perguntando se todos os dias em Paraty eram assim (obviamente que não). Um paulista dono de livraria e sua amiga escritora e psicanalista tornaram-se meus companheiros duramte aquele intervalo e ela, freqüentadora de Paraty há trinta anos me contou algo interessante: diz-se que aquele
labirinto de pedras é daquele jeito pois, nos tempos da coleta do ouro os escravos que o escondiam tinham mais tempo de se esconder dos oficiais da coleta que os procuravam. Os portugueses se perdiam no labirinto e ficavam dando voltas e mais voltas - o escravo e seu
tesouro há muito já tinham partido.

Consegui um ingresso de graça para a mesa das 15hrs, na Matriz. O tema era "Terras", com Antônio Torres e Mia Couto. Não conhecia os dois escritores e fiquei maravilhada. O debate foi ótimo e o mediador era bom. Deixou o debate fluir e a interação entre os dois escritores realmente aconteceu; ao invés de simplesmente trocarem figurinhas, eles conversaram sobre a relevância da sua terra para a obra de um escritor.

17h. Estava ansiosa esperando pela mesa "Crimes e Castigos". Atendeu todas as minhas expectativas, e que delícia, as superou. Já conhecia o trabalho dos dois, e sou fascinada pelo Arriaga. Queria muito ouvir a sua teoria sobre a escrita no cinema. O mediador foi o melhor de
todos: Marçal Aquino, escritor paulista. Inteligente, conhecedor da obra dos dois e também um escritor policial - o que se mostrou uma ótima escolha por parte da organização da FLIP. Tanto Lehane quanto Arriaga vêm de origem violenta, escrevem sobre a violência no ser humano e suas conseqüências só que de eixos diferentes: Lehane é de Boston, e Guillermo, da Cidade do México. O debate foi fantástico; eles discutiram sobre como a sua origem e as marcas que ela deixou impregnam suas obras e sobre a visão, que eles acham deturpada, da violência hoje, presente, por exemplo nos filmes de Tarantino (fala de Lehane). Arriaga fez questão de frisar que um escrito para o cinema é também literatura, e o filme não pertence ao diretor - a discussão atual sobre o papel do roteiristmais a dentro da ind. cinematográfica pertence a ele e sua briga com o diretor Irriñatu. Contou que seus roteiros sempre são biográficos: o cachorro de Amores Perros é o seu, ele sofreu uma infeccção no coração e seu médico o avisou que ele
teria apenas uma noite, e quando criança, atirou, com o irmão, em um ônibus repleto de turistas. Para Lehane, não há diferença entre a escrita do livro ou do cinema: ele apenas escreve. Se isso irá virar filme ou não, é para ser pensado depois. Enfim. O debate foi maravilhoso. Eu encontrei muitos escritores passeando por Paraty, mas não encontrei o Arriaga, e como eu gostaria de tê-lo encontrado e feito mais uma bateria de perguntas que ocupavam minha mente, enquanto
ele falava... Uma pelo menos foi feita: no fim do debate, surgiu um bilhete da platéia: "Arriaga, por favor, acabe com a minha angústia: o que a japonesa escreveu para o policial naquele bilhete"? Risos da platéia. Suspense. Ele pega o microfone e anuncia que vai revelar o que estava escrito. Prendo a respiração. Ele, rindo, solta algumas frases em japonês. A platéia vai abaixo entre risos e aplausos.

Pego meu ônibus para Trindade (não consegui uma vaga em Paraty; incompetência minha, devia ter procurado mais - Milton, o meu companheiro paulista, havia chegado quarta-feira e imediatemente conseguiu um quarto, até mais barato que o meu). A estrada é, no adjetivo mais simples que consigo encontrar agora, perigosa. Sem iluminação alguma, com espaço apenas para um carro e repleta de curvas. Morta de cansaço, tudo o que eu queria era cama e comida. Abdiquei da comida e apenas dormi, dormi, dormi. No dia seguinte, a surpresa: Trindade é bela. Muito bela. Na hora veio à cabeça: Capão, na Chapada Diamantina: uma pequena vila, de ruas estreitas e cercada por mata atlântica. Para minha surpresa maior não são apenas (oh,
apenas...) cachoeiras e florestas: HÁ PRAIA EM TRINDADE. Não satisfeita com tudo aquilo, ela ainda guarda uma praia paradisíaca. Não houve tempo para aproveitá-la a não ser pela janela do ônibus para Paraty: já estava na hora da mesa de 10hrs, uma análise da obra do
Nélson por Arnaldo Jabor, Leyla Perrone-Moysés e Nuno Ramos.

Sempre fui da opinião que Jabor nunca deveria ter migrado do cinema para o seu jornalismo de achismos e opiniões terrivelmente chatas e intelectualóides. Mas, fui de curiosidade - afinal, sempre se quer saber o que Jabor vai falar dessa vez. Ele não pôde ir, devido ao nascimento de seu neto (a escritora/psicanilista paulista me disse que na flip do ano passado ele foi vaiado e picharam frases não muito agradáveis nos muros de Paraty, e ela achava que por isso ele não foi. Discordo. Jabor tem o ego grande, grandíssimo, e gosta de ser odiado: os intelectuais não são compreendidos). No seu lugar, Nelson Motta. O mediador foi razoável. Seguiu-se o esquema de cada um dar a sua opinião e ponto final (Jabor gravou um extenso depoimento sobre sua
ligação com Nelson e suas análises da obra). Não gostei. Opinião por opinião eu leio em revistas de crítica literária; eu queria ver o debate, as diferentes visões discutidas e convergidas, ou não. cada um deu seu ponto de vista e fim. Leyla é crítica literária da USP e fez um interessante monólogo sobre a análise lingüística do discurso de Nélson tanto das crônicas, quanto dos folhetins e das peças. O Nuno é um artista plástico aparentemente incensado - o que um artista
plástico tem a dizer sobre Nélson nem ele mesmo sabe, mas tudo bem - e enrolou, enrolou para no fim dizer que discordava de Jabor. E Nelson é sempre Nelson. Sempre simpático, sempre um bom contador de história, discordando sutilmente de Jabor ao mesmo tempo em que relembrava histórias de sua adolescência e de seu convívio com Nelson. (Interessante foi, depois, passeando pela Rua da Matriz encontrar com Motta sentado em um degrau da escadaria da Igreja falando no celular sobre o debate. Não resisti, andei mais alguns metros, virei à
esquerda e abri a orelha para ouvir o que ele falava).

11h45: "Por trás do balcão": Silviano Santiago e César Aira, discutindo sobre a transição e as fronteiras entre o ensaísta e o literato. Conhecia "Em Liberdade", de Santiago, mas não conhecia Aira. Foi dele a frase mais famosa, até agora, da FLIP: ao ser perguntado se o realismo mágico está enterrado, respondeu: "Me parece que este termo foi inventado por Alejandro alguma coisa - não gravei o nome, me desculpem - que, me parece, queria rotular seus livros medíocres. Acho
que... este termo pertence... Quem melhor escreveu realismo foi Gabriel Garcia Márquez, que nos seus livros deste tema se mostrou ainda mais medíocre". Silêncio da platéia. O homem realmente acabou de dizer que Cem Anos de Solidão é medíocre? Ninguém da platéia se
manifestou. O mediador cai em riso. A frase que mais me chamou a atenção, porém, partiu da boca de Silviano ao dizer que tem dedico seu tempo mais às artes plásticas que ao estudo literário: "Eu sou um homem um pouco mais velho que o meu companheiro de mesa - tenho 70
anos. Nessa idade, o tesão que vem de outro lugar vai para os olhos." E seguiu-se assim: cada qual contando sua experiência sobre ensaísta e escritor e falando sobre a transição. Os dois concordaram que são escritores que não cabem em gêneros, e isso é uma brincadeira gostosa,
pois desse jeito, não há rótulos (observação de Silviano). O mediador foi um caso à parte: ao invés de aprofundar a observação de Aira, começou a rir; desconhecia a obra dos dois escritores - o que provocou uma leve ironia do mesmo Aira ao responder uma pergunta e um momento
constragedor com Santiago. Para os que não conhecem o escritor, estava escrito na programação da FLIP, na sua biografia, que ele era um profundo conhecedor da literatura da América Latina e já produziu diversos ensaios sobre o tema. O mediador pergunta: Silviano, aproveitando que o nosso companheiro de mesa é argentino, o que você acha da literatura da América Latina? Dispensável.

Ás 15h, veio a mesa "Perdoa-me por me Traíres", de Alan Pauls e Maria Rita Kehl, aquela do início de texto, que não consegui ver até o fim - apenas vi a apresentação de Pauls e a leitura do cap. 3 de seu livro "O Passado" (antes disso foi exibido trechos da adaptação fílmica do livro realizada por Babenco). Gostei do que ouvi e pretendo comprar o livro e ver o filme. (Uma observação: ouvi a leitura de Pauls em espanhol, pelo headset - o único que funcionou comigo; tentei usar o head set em outras mesas e estava falhando. Acho que dei azar, mas de qualquer forma, ponto negativo para a organização do evento. TODOS deveriam estar funcionando.)

Saldo da FLIP: Positivo. Talvez seja a impressão de uma virgem no Festival, mas gostei do vi, do que ouvi e aprendi muito. No fim das contas, muito mais do que esbarrar com celebridades, comprar artesanato kitsch e andar pelas ruas de pedra de Paraty, o que importa não é aprender? Pelo menos, para mim, isto é o que importava. E eu aproveitei cada momento.