terça-feira, 29 de abril de 2008

quando desço do ônibus, o relógio marca dez horas de noite. em ponto. abro a porta, o gato preto me recepciona. estranhamente, há comida no prato. por ter demorado tanto a chegar, pensei que já estaria comendo reboco de parede. um banho. antes de tudo, um banho. uma chuveirada rápída, que é para não demorar muito. largo a calça e a blusa em cima da poltrona, e a calcinha preta voa longe. sentindo-me culpada pelo atraso, boto mais comida pro gato; merda, derrubei tudo. amaldiçôo trezentas vezes essa maldita culpa cristã - culpa de tudo, de existir, de nascer pecadora. não quero ler a folha e com o rabo de olho o hamlet em cima do sofá espreita - ei, esqueceu de mim? tiro uma pizza da geladeira, de ontem, a pior de todas, a sem tesão algum de ser pizza, já virou uma massa, quase papa de presidiário. junto forças para não desabar na cama. despejo o quadril na cadeira e sonho com a terça-feira em que meu dia acabará às oito da noite.

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péssima escolha, menina, péssima, essa de não perdoar.

domingo, 27 de abril de 2008

tenho dois gatos. o branco, Lou, e o preto, Nikolai. Lou é imponente e anda sobre o assoalho de madeira como se este fosse um tapete vermelho, com fãs e jornalistas ávidos o esperando, e ele a ignorá-los solenemente. Nikolai é quase humano - carente e inseguro, desconta o ciúme que tem do irmão mais velho e mais refinado na comida; de dois em dois dias um saco novo de ração. quando abro um livro na cama, o preto me faz companhia e esparralha-se na janela, perdido entre as cores (o vermelho e verde do restaurante, o azul e amarelo dos ônibus, o laranja das latas de lixo) e o barulho de laranjeiras. o branco, por sua vez, não gosta de parecer necessitado de amor: quando quero dar carinho, ele reclama, emburrado; uns vinte minutos depois, se aninha dentro das minhas pernas cruzadas para dormir enquanto escrevo. como dois irmãos, eles brigam sempre que se consideram desprezados; derrubam caixas, lençóis, livros e um dia o Nikolai até quebrou o telefone. eu tenho duas opções: assistir ao caos passivamente - que dura entre treze e dezessete minutos -, o que eventualmente, os cansará ou tentar apartar a briga para largar tudo e ficar horas coçando a barriga dos dois. quase sempre eles me ganham.

sábado, 26 de abril de 2008

Jean-Luc Godard, cineasta, disse certa vez que, independentemente da qualidade, todo filme tem o mérito de nos transportar para determinada época. Essa é uma das características mais atraentes de Definitely, Maybe. Os anos 90 - ainda mais, os anos 90 em Nova York - estão representados em todo o seu yuppisimo, surgimento da internet e febre democrata.

Mas, além disso, o roteiro é uma reinvenção das comédias românticas, esse gênero tão ascoroso e que desde a última safra da Meg Ryan perdeu público e tornou-se paródia de si. O herói conhece a mocinha, por circunstâncias adversas (família, trabalho, amigos, ex-namorado) eles não ficam juntos, tropeçam algumas vezes, se esbarram mais outras, e terminam happily ever after. A massa cerebral dos roteiristas é gasta em inventar diferentes situações para o belíssimo casal ficar junto para sempre. (Trama essa responsável pela desilusão amorosa de 99% da população - escolada na lição de 'amor eterno e único' de Hollywood).

Definitely, Maybe é a história de como o nosso herói ficou sozinho. A seqüência inicial nos revela um pedido de divórcio, onde falta a assinatura de William Hayes - publicitário frustrado e já com algumas entradas como moldura. Conhecemos sua filha, Maya, que após uma péssima primeira aula de educação sexual, quer, enfim, entender como foi fabricada. Com medo de magoar a menina - afinal, destruir contos-de-fadas não é uma tarefa interessante -, e sendo pressionado por um lindo rostinho, Will decide contar suas desilusões amorosas com as mulheres que teve - trocando os nomes, alterando alguns fatos, e que Maya se vire para descobrir quem é sua mãe.

A delicadeza da história está na aproximação que Adam Brooks, diretor e roteirista, fez com o espectador: são pessoas reais que estão ali, largando sua vida interiorana para lutar por um ideal em Nova York, descobrindo como se virar, conhecendo pessoas no trabalho - finalmente, em uma comédia romântica, as pessoas trabalham! Já vi filmes em que o ato de se levantar e ir ganhar dinheiro é visto como uma afronta ao amor. É um fato: pessoas conhecem seus pares no escritório, e não em esbarros na rua, quando sininhos tocam e a neve começa a cair em flocos mínimos e calmos sobre o gorro da menina.

As pessoas erram o tempo todo. Falam sem pensar, tocam em assuntos proibidos, traem o namorado - e nem por isso elas devem ser excluídas do filme. O diretor devolve à comédia romântica inseguros, gagos, infiéis, perdidos, travados - personagens que precisam de umas boas sessões de terapia. Mas Brooks não ri na cara deles.

Há erros, sim, e eles se concentram nos vinte minutos finais. A sensação é que o desespero subiu à cabeça quando diretor/editor perceberam o relógio em 1h40, e decidiram apressar tudo para cair no desfecho simples e vazio do gênero. Mas há méritos, e muitos. Um alívio.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

eu disse oi com toda a sinceridade que aquele momento pôde me conceder; rastreei as simples duas letras buscando algo que desse por satisfeitos a dor, o desejo, a negação, e a vontade. a negação, não seria - inclusive -, a primeira parte de uma lista de cinco passos rumo ao paraíso longe dos vícios? nada mais que uma bela dose de nicotina; assim deve ser encarada essa sua figura no meu porta-retratos; quatro passos distante da libertação. tenho saudades, não sei nem de quê - deve ser de sofrer - , mas o pior, o pior mesmo é relembrar cada lençol e a inestimável pergunta que me vem à cabeça: fomos felizes? há feridas aqui sem a devida mezinha. acima de tudo, dê-me a verdade - e eu sempre desconfiei que seu amor fosse uma mentira.
- Ás vezes, eu queria ter alguma fé.

- Como assim?

- Fé, acreditar em alguma coisa, como essas pessoas.

- Mas por quê? Não tem sentido isso.

- Porque seria muito mais fácil. Não ficaria presa em dúvidas. Pessoas com fé acreditam que deus traçou um caminho perfeito para elas, então tudo dará certo.

- Hum.

- Não importa o caminho que você siga, tudo dará certo, porque você está com deus. Eu não ficaria me questionando qual caminho seguir, para onde estou indo -se estou perdendo tempo. Não se perde tempo com deus.

- Talvez. Entra para uma igreja.

- Não consigo. A repulsa é mais forte que a vontade de encontrar um caminho certo.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Triste é ver que o tempo passou para mim e para você; mas enquanto comigo os olhos tornaram-se amargos e o sorriso cínico, sua alegria ainda é a mesma pela manhå. Temos vinte, não temos mais quinze, teremos trinta, não mais vinte, e eu sempre com esse gosto acre de quem perdeu muita coisa. E assistiu à elas irem embora.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Você Decide versão 2008

Se você acha que os pais mataram Isabella Nardoni ligue para 0300 - 54101.

Se você acha que os pais não mataram Isabella Nardoni ligue para 0300 - 54102.



* A ligação é tarifada como pulso normal + impostos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A mão, mesmo tremendo, consegue deslizar pelos cabelos ruivos. Ruivos não, acobreados. Segura um punhado de fios, lisos como os da mãe. Já foram pretos, loiros, e hoje são assim – cor de barro, árido. Desistiu de dormi, o sono virá com o caminhar das aulas; no primeiro dia sempre fica assim, irrequieta, pensativa. Dava tudo para saber o que se passa em cada olhar daqueles meninos, cinqüenta olhares diferentes, inquisidores. Eles não sabem – ela também julga. Cada um deles, com lábios ágeis, cheios de vida e fúria. Meus olhos já foram assim. A professora. A professora tem o poder. A professora é maior que qualquer um ali e pode passar por cima de qualquer garotinho intrometido. Uma vez fez isso. Que horror, Leandra! Sim, abuso de poder. Não, que coisa feia. Não condiz com suas atitudes normais. A dez metros, Luís ronca; a samba-canção cinza o fagocita – nada mais daquela pele bronzeada, aqueles ossos cobertos de pêlo, nem força masculina Luís possuía mais. Em um passado distante – solidificado em fotos kodak -, quando eram jovens, atores nas terças e quintas à noite, e seres humanos normais no resto dos dias, famintos de desejo, ávidos por descobrirem-se, ah!, ali, sim, funcionava. Eram vários. Uma noite, Leandra era uma princesa tropicalista, e ele o Romeu de bata; na peça seguinte, era Medéia. Luís era mais homem, era homem inteiro. Foi tudo pelos ares.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Desci na estação do Largo Machado e andei até a pizzaria para comprar um suco. Ela já estava fechada. Relampejou, e o chão de pedrinhas sujas de mijo e pipoca para os pombos ficou azul. Enquanto andava - e chovia, e andava, e chovia -, e via minha sombra azul-marinho, tive saudade de casa. Minha primeira casa, da varanda mal pintada, do sofá vermelho. Eu azul-marinho no Machado, e o sofá vermelho lá, bem distante. No sagrado ilusório do passado.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Quando a semana é ruim, consigo sentir o cheiro de estrume desde o domingo à noite. Computador quebrado - vírus por mp3 -, pesadelos com Henrik Ibsen me perseguindo e gritando: "o trabalho está atrasado, Nora, o trabalho está atrasado", fita que dropa e eu às voltas com o manual da câmera em francês, e, agora, o joelho esquerdo resolve estourar. Dentro de poucos dias, um terremoto de 7.3 na escala Richter acontecerá no Rio de Janeiro, com a estranha característica de atingir somente um bairro, e dentro desse bairro somente uma rua, e dentro dessa rua, somente um edifício. O dos judeus e nordestinos fãs de jazz.

***
Olhei a definição de "festival" no dicionário on-line.
festival

do Ing. festival <>

s. m., Angola,
grande festa, cortejo cívico;
espectáculo.

do Lat. festivu
adj. 2 gén.,
festivo.
Aaaaah.
Agora entendi tudo. As regras do É tudo verdade eram bem simples: os ingressos são de graça, e serão distribuídos uma hora antes do filme, para evitar concentrações - afinal, isso é um festival! O que dizer, então, de uma zé-ruela, namorada de ninguém, filha de ninguém, funcionária de lugar algum, que chegou com sua bolsinha às 19h10 para o filme às 20h, e não havia mais ingresso?
"Senhora, só foram disponibilizados 50 ingressos para não-convidados."
"E quantos lugares há na sala?"
"350".
"Ah".
Espetáculo. Espetáculo. Lembre-se sempre, L., festival no Rio de Janeiro é espectáculo.
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Preciso de férias.