quinta-feira, 30 de setembro de 2010

imagino um lençol branco caindo sobre o leblon. homens, mecânicos, babás e estudantes reconfortados pela cegueira momentânea. não uma cegueira louca, cegueira saramago, mas a passividade e de quem, mesmo ainda vendo o sol refletido nas teias de linho branco, escolhe por continuar tapando os olhos.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

fim de festa

por aqui, todos já foram embora: largaram os vestidos, os copos, os relógios e apesar das promessas de volta na segunda-feira, a ressaca das janelas já continha o murmuro dos próximos dias. alice levantou-se, lavou as mãos, as colocou de volta nos bolsos, contou quantos vermelhos foram despedaçados entre os tapetes e sentou para escrever uma carta.

começava assim:

setembro de 2010,

daqui a quinze anos, talvez você se lembre dessa noite como aquela em que perdera as chaves em uma estranha festa de despedida, na qual nenhum dos convidados sabia para onde - e nem quando - a dona da casa iria viajar. sabiam apenas que ela iria; o que frisava a todo instante.
vejo da minha cozinha o desespero do marinheiro perdido, arremessado sem os botes salva-vidas. talvez você ligue para um amigo, e pergunte se ele viu. talvez você até tenha deixado a cópia com alguém (o que eu não acredito). pessoas prevenidas não arriscam nuvens em festas de despedidas.
levarei o molho de metal comigo: há uma verde brilhante, bregamente brilhante, talvez seja a da garagem. um dia, estivemos perto o suficiente para eu lhe roubar as chaves.
daqui a quinze anos.

domingo, 26 de setembro de 2010

houve uma época em que eu sentia tanto, mas tanto amor por você
(e um tal de um amor louco e rebelde, um adolescente inglês dos anos setenta)
que essa ausência de horizontes me comia as palavras.
hoje, fim de setembro, esse mês infeliz que me fodeu os cotovelos,
consigo olhar e pensar: sobrevivi e passou.
é engraçado.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

a atiradora de facas saiu para caçar. animal preso que estava, nada mais justo que escolhesse outro: mas chovia na cidade. a atiradora de facas tinha o orgulho ferido - após seis meses com uma dor no ombro, fora diagnosticada com a síndrome das gavetas. não era câncer, não era tendinite, não era l.e.r.: por ter armazenado demasiados artigos - alguns valoráveis e outros descartáveis - , a atiradora de facas carregou passados demais sobre os ombros. é uma explicação patética, ela pensou, quando ouviu pela primeira vez, no consultório do décimo-sétimo médico, na sala 201, do largo do machado. mas por justamente estar no 17o doutor, acabou por considerar a teoria plausível. a solução?, perguntou. você pode jogar os ombros na fogueira, respondeu, mas essas são medidas drásticas. em caso de dores amenas (ainda que estejam aí por seis meses), uma solução seria a transferência de gavetas. (ou de ombros, como preferir colocar). a atiradora de facas não pensou duas vezes. rumou a encontrar ombros livres para descarregar suas gavetas.

o problema todo se configurou, veja só, quando a atiradora de facas, nossa velha conhecida, percebeu que não gostaria de entregar, assim tão facilmente, como um mero menino de jornais o globo, a qualquer um da rua, seus papéis amassados. existia um, em especial, que ela pretendia guardar: toda uma coleção, aliás. por mais que lhe doessem os ombros, aqueles cadernos (já não eram mais blocos de rascunho; assumiram uma conotação importantíssima, de cadernos) continham algo de si, imutável e perene: algo que se entrasse em contato com a atmosfera poderia explodir.


e como o velho dylan em meet me in the morning, a atiradora de facas esvaiu-se correndo daquela calçada suja, levando consigo cadernos, rascunhos, cânceres e sábados, enfiou-se no primeiro táxi que viu e partiu para são paulo. carregava consigo receitas para uma vida plena, poemas de jorge de lima e declarações de amor.

biografia

nome: manuela ferreira.

profissão: atiradora de facas.

filiação: filha de um dançarino sem origem identificável com uma economista brasileira.

descrição: manuela ferreira escreve, filma, fotografa, desenha, pinta; estuda história, estuda arte, estuda línguas, estuda filosofia; pinta-se de roxo às quartas, azul às quintas e cinza às sextas-feiras; tomou café com os principais escritores norte-americanos do início do século XX e dizem até que engatou um romance com faulkner, mas o trocou por hemingway.

mas na hora de se matar, manuela ferreira, que esqueceu onde colocou as chaves e perdeu os fios da meada, tem tanto medo de se atrapalhar e parar em uma cadeira de rodas - ao invés do cemitério -, que sobrevive há vinte e cinco anos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

tenho medo de desabar ao ouvir sua voz.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

gostaria de ter algo a mais para dizer além do já esperado.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

dança: balé desencontrado.

música: uma canção qualquer do the doors.

diálogo: estão os dois em silêncio.

cenário: não ocupam o mesmo espaço.

ação: caminham, solitários, em direções opostas.

luz: azulada, como tristeza que salta.

domingo, 19 de setembro de 2010

it's ours

there is always that space there
just before they get to us
that space
that fine relaxer
the breather
while say
flopping on a bed
thinking of nothing
or say
pouring a glass of water from the
spigot
while entranced by
nothing

that
gentle pure
space

it's worth

centuries of
existence

say

just to scratch your neck
while looking out the window at
a bare branch

that space
there
before they get to us
ensures
that
when they do
they won't
get it all

ever.



(c. bukowski)
lilás é dessas palavras às quais se presta reverência.
enquanto espero a hora que nunca chega, bebo um café e prefacio o seu livro: o escritor tem garras para arrancar-me a alma e chora quando, contrariado, barram suas represas. o escritor nunca sofre: a VERDADE é seu único delírio revolucionário. o resto, são contas a pagar. mal sabe o escritor: da verdade, tratam apenas as tartarugas.

sábado, 18 de setembro de 2010

almoçamos vagarosamente, quase em silêncio, como dois velhos cansados de guerra. te conto alguns problemas daqui, você me rebate com suas questões de fios & feiras & folhas engalfinhadas nas persianas. daqui a alguns minutos, a campainha vai tocar, a hora do recreio terá terminado e, já sem o salto alto, eu seguirei a rota de casa, atravessando os bueiros e os labirintos desenhados por ti em meu caderno.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

dúvida

meu amor,

quando disse que não sabia o que fazer, não esperava uma resposta definitiva. versar sobre nuvens é fácil; o sangue começa a escorrer quando se fala em grades. confesso aqui que minha ansiedade enclausurou os pensamentos e transformou água em redemoinho, tempestade de granito, quebra-cabeças revirado e todas essas metáforas baratas típicas da baixa literatura. no entanto, uma pergunta aqui cabe: há amanhã nesse calendário de cores turvas?

porque você sabe: a insistência vã, dos sete pecados capitais, é aquele que te leva direto ao inferno.

lista de obsessões clandestinas

lou reed, dias nublados na gávea, cores em acrílico, nelo johann, literatura americana do início do século XX, relógios que rodam de trás para frente, enganar a realidade, descer ao caos e retornar caminhando, pássaros, as infinitas possibilidades do erro, a história do mundo, fugas, escapes e outras distrações, abandonar, levemente, as dores.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

lições

na faculdade de história, explica o professor:

crise normal
desvio de rota com o passado
a saída é olhar para trás e entender onde
a pedra balançou.

crise crítica
rompimento completo com o passado
a única solução é criar
um novo horizonte

crise catastrófica
impossibilidade de qualquer relação com o passado
não há escape.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

a mulher deveria estar grávida. nesta hora, se lembra de hemingway: "vende-se um par de sapatos de bebê nunca usados". o menor conto do mundo. a vida da mulher. a vida em seis palavras. se hemingway tivesse escrito "vende-se uma vida" não seria tão genial: porque não tem fim. um conto necessita de um fim. levanta os olhos: foucault discorre sobre morfologia social, organização de nações, territórios. a mulher não-grávida não tem território. a mulher não grávida perdeu o território - perdeu ou entregou? entregou, escrevamos. a mulher entregou a nação, primeiro à enfermeira que lhe segurou a mão e disse que tudo ficaria bem - não era para ser, minha filha -, depois, ao homem de touca branca que lhe tirou o vestido preto, as sandálias, o sutiã preto e desfiapado e lhe arrancou - aspirou, aspirou é o termo técnico - o filho de dois meses. O céu laranja, enquanto estava anestesiada. O céu laranja de 2003.

voltemos a hemingway. ou melhor, às chaves. a mulher não-mais-grávida perdeu as chaves. elas podem estar: a) na própria casa, b) no trabalho, c) numa boca de lixo qualquer (o que significa que a mulher não-mais-grávida terá que pular o portão, já que sempre deixa as portas destrancadas).

vamos falar a verdade: a mulher está cansada de morrer. morreu lá, em 2003, debaixo do céu laranja. morreu agora, na sala de espera.

a mulher se banha: ficam nos azulejos fios de cabelo, pernas, pudores. ela bate a testa no azulejo: uma, duas, três, quatro vezes: começa a sangrar. disseram-lhe na clínica que sangraria, todos os dias, por 45 dias - o tempo médio para o corpo se recuperar do algo que perdeu. [ uma hora estava aqui, outra, não mais ]. a mulher não tem território: seria ainda mulher? arrancaram-lhe as asas, negras.

(volver, volver, hasta el punto dónde no más había dolor.)

ontem, havia sonhado com torneiras pingando; hoje, acordou com os tiros do batalhão da urca. eles não falaram, mas a mulher-não-mais-grávida-e-já-sem-território pôs um band-aid do mickey na testa e trancou as fechaduras.
outro dia, juliana ligou para saber como a outra estava. respondeu que todos passavam bem, a filha havia nascido e os azulejos da cozinha, trocados. havia conseguido um desconto no imposto de renda com o curso da avó do marido e, ainda mais, finalmente quitado as dívidas do passado. juliana ouviu calada e desligou. derramou uma lágrima por ela. mas somente uma, que a noite se encarregava das outras.

domingo, 12 de setembro de 2010

domingo

t. b.,

entre antibióticos, antiinflamatórios, nelo johanns e ana cristinas um poema me veio à cabeça. fala sobre pássaros perdidos. sobre não percebermos os pássaros perdidos.

o rascunho é mais ou menos assim:

paralelamente percebi pássaros perdidos pousando
[ insensíveis indiscretos insalubres insistentes
pássaros. porém perdidos.
paciência, pedro, pedem.
paciência, pedro, provocam.


mas ainda não sei para onde ir. vou pensar durante à noite.


aliás, quando eu voltava para casa hoje de manhã, o céu estava com um azul, meu amigo, que nem se eu engolisse todo o livro de história de arte do tate modern eu seria capaz de definir. era um tom lisérgico, com amplas possibilidades e todas elas povoadas de pássaros e criaturas mágicas & livres. como seria ter asas, hein?

[ mundo, acorda!

[depois de muito pensar, decidi a próxima tatuagem (acho que farei em londres): ombro direito, balões que sobem ao céu. e embaixo, we're just balloons faking reality.]

será que existe uma profissão em que se passe o dia escrevendo cartas? não as cartas da montenegro naquele filme ruim do walter, mas CARTAS de verdade, com vidas inventadas; e se eu inventasse um projeto em que todo dia eu escrevesse uma carta, baseada na vida de uma pessoa, toda arrumadinha e montadinha e mandasse para um endereço qualquer da lista telefônica? isso mudaria a vida de alguém? mudaria a sua vida receber uma carta vinda-de-qualquer-lugar de uma pessoa que abre o seu coração e seus pensamentos, mesmo que não seja verdade? SERÁ QUE PAGARIAM POR ISSO? rá rá rá. preciso acertar a mega-sena. e logo. preu poder comprar meus amigos e descontar minhas idéias do imposto de renda.

promete que você não deixa de me amar porque eu tenho pensamentos malucos? porque você é lindo e eu te amo, mesmo eu sendo um caos. aliás, eu te amo pra caralho. aliás, é tanto amor que acho que até curaria a fome na áfrica.


luv always,

m.
todos os problemas de alice se resumiam a ela não saber, até hoje, onde enfiar as mãos quando não estava frio.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

escrever longas cartas de amor

ligar todos os rádios da casa em estações diferentes

sobreviver em meio aos buracos

resistir às palavras que escaparam

lembrar: o vazio é bastante adaptável e encaixa-se nos ossos

resistência à sintaxe

o que resta? escovar os dentes com cuidado.
a mulher que sobrevive a setembro sobrevive a qualquer coisa.
o sol descendo sobre o guaíba não existe no dicionário.

minha mais nova cor favorita: céu-de-guaíba.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

i know where the evil lies
inside of your heart
[ well get out of here ]
if you're gonna try to make it right
you're surely gonna end up wrong
[ wrong wrong wrong wrong ]

terça-feira, 7 de setembro de 2010

ulisses,

também disseram a você que seria fácil? fácil e simples? dúvida: por mais quanto tempo é preciso aguentar? quando se torna minimamente aceitável escapar pela porta dos fundos? me pergunto se todas as salas são sempre brancas, se todos os livros são sempre mais pesados que os pensamentos, se as lágrimas sempre ocupam mais espaço que o ar. difícil respirar neste quarto escuro, na ponte - vazia - que divide o silêncio do estado onde as palavras já não fazem mais sentido. levaram minhas chaves, a identidade e minhas canetas, mas já não fazem falta: tenho a noite inteira para preencher.
meu poema carrega suas nuvens amarelas
por entre palavras cruzadas
e através das madrugadas.
por fim, a queda não pareceu tão ruim, afinal: existia um túnel encoberto.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

sonhou que estava no mesmo lugar, mas em um outro tempo, e particularmente, em outra alma. a pessoa que fora durante as férias da passagem do século, quando não havia medo.

a chuva hoje é insistente e incompleta, reverberam as lacunas da casa abandonada. as vidraças ainda estão lá, assim como as grades das janelas, mas de certa forma, o quebra-cabeça não está completo. ele já esteve, uma vez. naquelas férias. onde tudo era possível: e foi. a mulher sente-se inútil (um pouco como a chuva de agora) e procura os isqueiros: nos bolsos, nos paletós, nos baús, nos lençóis, nos buracos do taco.

a obsessão clandestina da mulher já sem a esperança dos isqueiros é retornar ao mesmo ponto onde está agora mas há nove anos passados. como (ainda) não consegue, morde o dedo com força e espera a tarde escorregar.

domingo, 5 de setembro de 2010

eu sou uma mulher que quase sempre tem cigarros mas nunca tem isqueiros.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

eu queria te mostrar que existem outras saídas na vida, que ainda é possível esconder um segredo na nuvem que ele vai estar lá quando você voltar, que não há divisões no nosso amor; queria te dizer que nossos trilhos andam em passos além dos 0.5mm habituais e que na nossa casa não existirão paredes para dividir nossos sonhos manuscritos em caneta bic azul, queria te contar que meu chão ri quando você passa por ele, que mesmo emoldurado pelo tempo e pela insônia, a madeira ainda resiste.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

eu gostaria muito de chorar porque penso em tudo que fiz de errado todos esses anos e nada me vem à memória; óbvio que dezenas de escolhas erradas acendem seus faróis às quintas-feiras, mas nada exatamente trágico, que eu pense e aponte: foi AQUI. foi aqui onde tudo começou a dar errado. e a bem da verdade, as coisas não andam exatamente a passos erráticos, eu apenas não tenho alcançado grande sono esses dias; rolo na cama como um homem de sessenta anos, mal contente com o corpo e mal acostumado com o passar dos anos; mal acostumado com a passagem (rápida) da adolescência para a morte. estou com muito cansaço das pessoas. não escovo os dentes há quatro dias - preguiça de levantar os joelhos tortos e estourados, andar até à pia e... esforço. creio que a falta de sono irrompe meus vasos sanguíneos - será? outro dia sonhei com você, deitada ao meu lado, sob um lençol branco, de linho, pura e delicada, como fora aquela terça-feira.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

meu silêncio arde.
acordei com uma inutilidade rangendo entre os dentes.