terça-feira, 4 de março de 2008

Terça-feira sempre é um dia estranho. Depois da segunda, quando todas as histórias foram contadas e as ressacas esquecidas, e antes da quarta, que é o início oficial do fim-de-semana. É um dia nulo. Dia para ficar doente, digamos assim.

Nove horas da noite, congestionada, dividida entre Proust e Vick Vaporubi, ouço um grito.

- Júlia! Júlia!

Repassei mentalmente os nomes dos moradores do meu querido edíficio torres - eles vêm na ata da reunião de condomínio, a qual eu nunca compareço -, e não havia Júlia nenhuma. Claro, como eu fui perder meu tempo com o edifício torres! Por aqui moram apenas velhos judeus com seus gatos, nordestinas perdidas com seus gatos, e bêbados amantes de jazz. A diversão encontra-se no prédio da frente: tarados viciado em sexy time - não é minha culpa se a tevê do vizinho fica virada para a minha janela - , esposas barraqueiras e ciumentas, maridos infiéis e bissexuais.

- Júlia! Júlia!

Pronto. Maldito moleque apaixonado. Acordou meu gato. Demorei milênios para fazer o Nico dormir, e quando ele cai, eu pego meu Proust visualizando o paraíso - maldito.

Não tinha como ignorar o grito desesperado. Levantei a fresta da minha cortina e tentei achar o cidadão. Coitado, tão inocente nos assuntos do amor: estacionou o carro, abriu uma faixa com letras garrafais vermelho-sangue e ficou tal qual poste, segurando o tecido:

JÚLIA EU TE AMO VOLTA PRA MIM.

Teria o apaixonado garoto bebido demais na noite anterior e acordado com a irmã da Júlia, Patrícia? Não. Ele estava desesperado. Foi algo ainda pior que uma traição. Gabriel - suponho esse o nome do garoto - chora. Gabriel grita. Tenho pena dele, mas fazer o quê? Descer e segurar a faixa junto com ele? Gritar pra Júlia descer, porque o amor da sua vida te espera?

Não, obrigada.

Ele buzinou uma vez. Nenhuma luz se acendeu. Todos na mais perfeita rotina - sempre há escândalos no prédio da frente; mais um, menos um, terça-feira, domingo. Só estávamos eu e o meu colega desesperado. Buzinou de novo. Até o Nico desistiu da Júlia. O gato se amontou nos lençóis laranjas, insensível ao choro do pobre menino. Gatos são desprezíveis.

Até que a mãe da Júlia desceu.

A senhora passaria como vendedora no canal de tapete - tinha o porte, sabe? Um jeito de andar caracteristíco de quem vende alguma coisa na televisão. No caso dela, combinava com tapete. Ela saiu do prédio, caminhou até Gabriel e sua faixa mambembe. Ele ainda chorava. Disse alguma coisa inaudível para curiosos que moram no terceiro andar. A mãe de Júlia parafraseou Proust:

'Meu querido garotinho, infelizmente, as minhas boas intenções não têm poder algum sobre uma mulher que se irrita por se sentir perseguida até numa festa por alguém que ela já não ama. Eu desci sozinha'.

O celtinha preto saiu cantando pneu em Laranjeiras, mas a faixa ficou, com suas letras garrafais em vermelho sangue, embolada perto de uma mangueira. Pensei que um vento fosse revelar seu conteúdo, fazê-la voar até a janela de Júlia, mas não. Faz calor pra cacete por aqui, e um calor sem vento.