segunda-feira, 22 de março de 2010

uma coisa que pensei enquanto você não vinha

- os seus telefonemas já foram mais doces, eu já fui menos babaca e sempre havia um pão com manteiga na geladeira.

o que o escritor fez? acendeu uma vela para são jorge - ele que nunca foi metido a falcatruas de fé -, pediu proteção (ou o que diabos essa gente pede quando tá cagada de medo), desligou o telefone, abriu as duas janelas. ouviu os tiros do morro dos prazeres.

caralho, é impossível escrever nessa cidade. [o rio de janeiro mais parece uma boca fumegante que sem dentes, caetano. reveja seus conceitos.] o escritor precisa entregar um roteiro pronto, amanhã, quinze páginas, sobre uma família perdida no sergipe - canindó de são francisco - para ir ao ar sexta à noite. adianta o quê?

(adianta a internet atrasada em dois meses)

o escritor tem raiva de todos esses filmes brasileiros sobre escritores: ele não é bonito, ele não consegue criar uma barba, ele não tem o pau grande, ele acha literatura russa bacana, mas seu forte é albert camus. vai ver foi por isso que o segundo livro não encontrou editora. deveria ter falado de tolstói.

(mas ele é: alcóolatra, fumante compulsivo, ex-morador da rua augusta, freqüentador de puteiro e morto de medo de virar a esquina e encontrar a primeira namorada)

batem na porta do apartamento do escritor. é a vizinha. linda. cabelos negros, uns olhos azuis cheios da porra da sinceridade, uns braços longos, uma esfinge. o escritor se comporta: o marido dela é seu amigo. 'tá a fim de um chope mais tarde, berê'? 'claro, claro. bate aqui e eu desço'.

a vizinha tem uma tatuagem na costela que de vez em quando aparece, especialmente nos dias em que faz faxina: um mundo em preto e branco com uma garota olhando, impávida. o escritor já sonhou em beijar aquelas costelas perfuradas de tinta, mas se controlou: não é nenhum rubem fonseca pra ir roubando mulher de amigo.

voltou ao roteiro. pois bem, mamãe: fique feliz, seu filho está na televisão. página nove, faltam apenas cinco. (quem vai ser o babaca a ler isso amanhã na emissora? pobre diabo).

[ lá vai bernardo, passa a primeira linha, a segunda, o ponta-direita da vergonha alheia tenta chutar-lhe a canela, não consegue, UHHHHHH, vem o trauma da infância desmoralizada, a primeira namorada que hoje se chama cláudia, tenta arrancar a bola da memória da punheta de cláudia cardinale, AAAAAAAAAAAH, mulher de sergipe, mulher de sergipe, mulher de sergipe, bernardo se aproxima do campo adversário, tenta pela esquerda - um ponto e vírgula -, tenta pela direita - mais uma locução - e, NA TRAVEEEEE ]

o telefone toca. só pode ser ela. a mulher do escritor. (ele não terminou a página nove).

- você disse que iria me ligar às nove.
- são nove e vinte, bernardo.
- e se eu tivesse saído? íamos nos desencontrar.
- em grande parte culpa da sua maldita obsessão em não ter um celular.
- estou na internet.
- a questão é: estou pronta. posso passar aí?
- pensei uma coisa enquanto você não vinha. posso dizer?
- pode.
- sam, esse é o início de uma bela amizade.
- a gente viu esse filme semana passada.
- eu sei.
- té amanhã, bê.
- té, bi.

o escritor desistiu: maquinou um verso aqui, outro ali, mas todos pareciam belos demais para a tevê. lembrou-se dos tempos em que não se permitia nem pensar em trabalhar para a tel-ah, que besteira, naquele tempo deixou de se permitir tanta coisa.

antes de dormir, ainda pensou em ligar para a bianca. considerou que fosse devaneios demais: desistiu.