quinta-feira, 24 de julho de 2008

helena e eduardo

Sentaram-se na mesa, o garçom os acompanhou todo o caminho - o restaurante estava vazio, era no meio da tarde do Centro, as pessoas estavam trabalhando, logicamente não haveria alma viva ali. Pediram uma taça de vinho cada um, aquele mesmo vinho, aquela mesma uva - cabernet, ela adora cabernet - e ela se prontificou a escolher a sua massa - era um restaurante italiano -, mas a quem enganar? Obviamente iria pedir o ravióli de mussarela de búfala com tomate seco e pequenas tiras de filé mignon ao molho rosê - não era isso que sempre pedia? Ela resmungou que estava morrendo de fome, tirou os óculos escuros, apertou os olhos para eles se acostumarem com a nova luz. ele segurou a mão dela, mas quase derrubou o copo com água que chegara fazia alguns instantes. tocava billie holiday - nessas horas sempre toca billie holiday -, e ela sorriu. ele soltou um f, assim meio caído, como não quer nada, para depois juntar-se ao i, e em seguida ao c e ao a. uma palavra ressabiada de ser palavra, sentida do seu significado ser tão menosprezado, desprezado, odiado. uma palavra que não quer ser palavra, não quer significar nada - só a confirmação, ah, a confirmação a faria feliz. fica. menos que um verbo, mais que um substantivo - um medo. a resposta já era certa, tão certa como o desejo dele de passar as mãos por aqueles braços, especialmente o direito, onde ela guardava uma pinta um pouco acima do ombro. obviamente foi não. ela não ia largar o marido-osfilhos-oemprego-areputação-asamizades-asfacilidadesdavidadecasada para se embrenhar em uma aventura - e por que ele não podia se comportar como um homem normal e continuar mantendo as aparências e deixar seguir aquele misto de romance/amizade que já durava quase quatro anos? não era tão bom assim, encontrar-se às quarta-feiras para um almoço, sempre em lugares novos, sair na quinta para uma trepada básica, sempre tão demorada, depois na sexta tomar um drinque com os amigos, e dali só a duas semanas se verem novamente? não era cômodo? o que você tem contra a comodidade? para mim, seria mais cômodo te ter o tempo todo, helena, aqui dentro, muito dentro, perto-dentro, sabe? possessividade demais é doença, ela riu, enquanto segurava delicadamente a enorme taça de vinho da safra de 2003, do chile, e dizia para si mesma: como é bom, como é bom. eduardo não queria começar a chorar, olhou para cima, mas a maldita voz daquela mulher infeliz lhe tocava o coração, aquela ex-escrava que cantava com tudo que tinha na alma - não conseguiu e desatou a chorar ridiculamente, como um menino que perde um brinquedo tão almejado o ano inteiro, aliás, como um menino que desejou, desejou, desejou, e quando recebeu o carrinho por controle em remoto em casa, ah!, ele vinha com defeito de fábrica. helena ficou atônita, quase engasgou com o vinho - coitada -, e segurou a mão dele, repetindo baixinho, como um sonho ruim, passou, passou, a vida é assim, ela não é romântica, aprenda a separar as duas coisas; somos adultos, não dá para largar assim a mão de uma vida estabilizada, correta, e de repente começar a remar contra a maré em direção a uma ilha que nem sabemos se existe. o garçom chegou com os dois pratos iguais, e o copo dela estava na metade, enquanto o dele permanecia cheio, cheio. ele ainda estava com os olhos molhados, e queria chorar mais, todavia temeu que a próxima ação dela fosse levantar-se e ir embora, e isso, ah, ele não iria agüentar - já tinha perdido tudo, e isso helena não sabia: tinha pedido o divórcio, arranjado apartamento, enquanto isso estava em um hotel com suas roupas e seus ternos bem passados, tinha escolhido um apartamento com vista para o mar, onde ela pudesse se sentar todos os dias pela manhã para ler o jornal, e a vida que ele tinha imaginando e já comprado com a poupança daqueles anos todos, a vida, a vida parecia tão perto, quase capaz de pegar com as mãos e beijar abraçar dormir descansado porque há esperança, há a visão do novo, porque há helena. e no entanto, helena estava muito mais preocupada em pegar o exame do marido no centro - a razão pela qual o restaurante da semana fora aquele - do que em vislumbrar o horizonte. uma raiva quente foi o gosto do vinho. teve vontade de ir embora, deixá-la sozinha com suas garras para nunca mais voltar a vê-la. mas aqueles olhos verdes, o cabelo preso de uma maneira tão verdadeira, não preso como sua mulher, ex-mulher, fazia: passar horas em frente ao espelho com o pote de creme ao lado tentando achar um jeito de amarrar os fios de maneira que o lado esquerdo do seu rosto sobressaísse, e enquanto isso o jogo do flamengo ia e vinha e acabava - não, era um preso natural, de quem apenas está com calor, não tinha nada de falso. e quando ela sorria. bah, quando ela sorria, o mundo acabava - é, eu sei o que vocês devem estar pensando, que grande babaca eu sou, usar desses clichês baratos, mas todas as cores do mundo são imediatamente transportadas para o seu rosto quando ela sorri. nada mais existe. o que você está pensando, eduardo? ela perguntou e ele percebeu que havia uma pequena mancha rosa no canto direito da sua boca, e ele sorriu, respondendo apenas que todas as cores do mundo estavam nela. era nisso que eu estava pensando.