você me pediu cinco verdades.
vou te dizer que essa foi a tarefa
mais escrota que já passei num mundo de quem nem acredita em vinte e quatro verdades - que dirá cinco.
uma.
amar é a única verdade.
é o único desmantelo. é a pior
eletricidade. a física quântica convertida em alentejo. amar é a única receita eficaz contra o
maior mal da humanidade: roer o sabugo. não se parar de roer: se cria
outros dedos. outros mindinhos. a única verdade que existe é amar.
única.
se ama muito nessa vida. e amar, só se for intensamente, ladeira
abaixo, arrancando dedos, anéis, sífilis, ilusões, desejos e matizes.
amor arranca: consegue nos arrancar de nós mesmos, da mesmice, do
estado-boi ao acordar pelas manhãs. o amor inventa palavras, desafia a
eletricidade, arranca os peixes-surdos do mar e rasga o silêncio. o amor
nos faz percorrer estradas e andar sobre águas.
existe o mar. existe a estrada. e existe o amor.
duas.
o tempo recria a fotografia.
é
quase uma esquizofrenia o que o tempo faz com as nossas impressões. os nosso verbos. as
nossas dores. o enorme vira ínfimo. o você vira quem sabe. a cicatriz
torna-se passagem. e o abismo - ou configurou-se abismo mesmo ou se
diluiu em cerveja gelada. ALIÁS: todas as certezas se diluem em cerveja
gelada (até a hora de seu estômago reclamar). até aquela mágoa
enraizada, aprofundada, amalucada, se evapora no doce sol do passar das
horas. a memória - especialmente a seletividade dela - é como o azul
lambendo a areia. no nosso caso, os abismos particulares (e sempre,
sempre, tão originais).
(já ouviu araçá azul?)
três.
o mundo precisa dos poetas como a palavra precisa do silêncio.
e
aqui eu devo adicionar um parêntesis: não é para enaltecer o meu lado,
não. o universo é constipado de beleza e azulzyness (capacidade de
afogar os nossos olhos no mais lindo azul que nem yves klein conseguiu
um dia), mas tempos há em que as retinas só captam os postes, a má
editoração do livro, a clonagem do cartão, o sotaque ridículo da sua
estagiária, o karaokê insuportável dos seus vizinhos no domingo à noite
com o baterista que - enfim. you got it. o poeta é este ser endemoniado,
preso o intestino com todas as palavras do mundo e que as vomita diante
da delicadeza de um alheio, de um sorriso incerto, de uma estrada que
abre a boca para te engolir. como se carregasse o verde preso à bile. o
corpo do poeta é feito do que ele mais ama e odeia no céu: palavras. sua
respiração é feita dos silêncios e corta as unhas para poder cuspir as
vírgulas. o mundo esquece que é feito de verde e de legiões. o poeta vem
com as montanhas. o poeta surge na finda noite e grita: vem.
quatro.
o homem é linguagem.
há um rinoceronte embaixo
da mesa. tudo que somos, que aprendemos,
que acreditamos serem verdades - fruto da linguagem. absorvemos
sentenças e gravamos-as como fixas em nossas cabeças. sentenças, dados,
imagens - como flores que apanhamos em campos frugais. filmes que
vemos, livros que lemos, frases que ouvimos, situações ocorridas com
outrem e tomamos para nós.
a
linguagem é tudo. é o que nos resta: brincar com ela. torná-la nossa
aliada. nos transformarmos como a língua se transforma.
cinco.
malas são desnecessárias.
quando se decide ir de um lugar a outro o melhor a fazer é ir de mãos
vazias - para receber bem a água fria. aquela coisa de formar uma concha
com as mãos e beber do vento, sabe? claro que viajar é substancialmente
diferente do mudar-se (ainda que a melhor viagem seja, nem que por
algumas horas, comportar-se como verdadeiro morador, antena captando
sotaques & manias), mas para quê carregar consigo o lugar de onde se
partiu?