cansado de migrar, a cada inverno, para uma nova praia - esse movimento sul-norte já estava causando remendos para as asas cansadas -, o pássaro negro abdicou primeiro de uma pontinha da asa esquerda. ficaria mais lento que o bando e teria uma excelente justificativa para aquietar-se em seus castelos de areia (ultimamente, rasava mais sobre a terra que às águas). passada a primeira revoada, percebeu ser o esforço ainda inútil: cortou, então, um pedaço da asa direita. foi ainda inútil: as gaivotas foram criadas para voar, e lá estava uma espécime tentando gravar sua rebeldia ao chão. desesperado, o negro pássaro arrancou os dedos. estava livre, finalmente! uma vida plana, retilínea e horizontal: todos os caminhos ao alcance da vista. no inverno seguinte, assistiu da janela a todas as gaivotas voarem sobre suas telhas; sem dedos, sequer conseguiu mandar um abraço. foi melhor assim.