a mulher deveria estar grávida. nesta hora, se lembra de hemingway: "vende-se um par de sapatos de bebê nunca usados". o menor conto do mundo. a vida da mulher. a vida em seis palavras. se hemingway tivesse escrito "vende-se uma vida" não seria tão genial: porque não tem fim. um conto necessita de um fim. levanta os olhos: foucault discorre sobre morfologia social, organização de nações, territórios. a mulher não-grávida não tem território. a mulher não grávida perdeu o território - perdeu ou entregou? entregou, escrevamos. a mulher entregou a nação, primeiro à enfermeira que lhe segurou a mão e disse que tudo ficaria bem - não era para ser, minha filha -, depois, ao homem de touca branca que lhe tirou o vestido preto, as sandálias, o sutiã preto e desfiapado e lhe arrancou - aspirou, aspirou é o termo técnico - o filho de dois meses. O céu laranja, enquanto estava anestesiada. O céu laranja de 2003.
voltemos a hemingway. ou melhor, às chaves. a mulher não-mais-grávida perdeu as chaves. elas podem estar: a) na própria casa, b) no trabalho, c) numa boca de lixo qualquer (o que significa que a mulher não-mais-grávida terá que pular o portão, já que sempre deixa as portas destrancadas).
vamos falar a verdade: a mulher está cansada de morrer. morreu lá, em 2003, debaixo do céu laranja. morreu agora, na sala de espera.
a mulher se banha: ficam nos azulejos fios de cabelo, pernas, pudores. ela bate a testa no azulejo: uma, duas, três, quatro vezes: começa a sangrar. disseram-lhe na clínica que sangraria, todos os dias, por 45 dias - o tempo médio para o corpo se recuperar do algo que perdeu. [ uma hora estava aqui, outra, não mais ]. a mulher não tem território: seria ainda mulher? arrancaram-lhe as asas, negras.
(volver, volver, hasta el punto dónde no más había dolor.)
ontem, havia sonhado com torneiras pingando; hoje, acordou com os tiros do batalhão da urca. eles não falaram, mas a mulher-não-mais-grávida-e-já-sem-território pôs um band-aid do mickey na testa e trancou as fechaduras.
voltemos a hemingway. ou melhor, às chaves. a mulher não-mais-grávida perdeu as chaves. elas podem estar: a) na própria casa, b) no trabalho, c) numa boca de lixo qualquer (o que significa que a mulher não-mais-grávida terá que pular o portão, já que sempre deixa as portas destrancadas).
vamos falar a verdade: a mulher está cansada de morrer. morreu lá, em 2003, debaixo do céu laranja. morreu agora, na sala de espera.
a mulher se banha: ficam nos azulejos fios de cabelo, pernas, pudores. ela bate a testa no azulejo: uma, duas, três, quatro vezes: começa a sangrar. disseram-lhe na clínica que sangraria, todos os dias, por 45 dias - o tempo médio para o corpo se recuperar do algo que perdeu. [ uma hora estava aqui, outra, não mais ]. a mulher não tem território: seria ainda mulher? arrancaram-lhe as asas, negras.
(volver, volver, hasta el punto dónde no más había dolor.)
ontem, havia sonhado com torneiras pingando; hoje, acordou com os tiros do batalhão da urca. eles não falaram, mas a mulher-não-mais-grávida-e-já-sem-território pôs um band-aid do mickey na testa e trancou as fechaduras.