sexta-feira, 24 de setembro de 2010

a atiradora de facas saiu para caçar. animal preso que estava, nada mais justo que escolhesse outro: mas chovia na cidade. a atiradora de facas tinha o orgulho ferido - após seis meses com uma dor no ombro, fora diagnosticada com a síndrome das gavetas. não era câncer, não era tendinite, não era l.e.r.: por ter armazenado demasiados artigos - alguns valoráveis e outros descartáveis - , a atiradora de facas carregou passados demais sobre os ombros. é uma explicação patética, ela pensou, quando ouviu pela primeira vez, no consultório do décimo-sétimo médico, na sala 201, do largo do machado. mas por justamente estar no 17o doutor, acabou por considerar a teoria plausível. a solução?, perguntou. você pode jogar os ombros na fogueira, respondeu, mas essas são medidas drásticas. em caso de dores amenas (ainda que estejam aí por seis meses), uma solução seria a transferência de gavetas. (ou de ombros, como preferir colocar). a atiradora de facas não pensou duas vezes. rumou a encontrar ombros livres para descarregar suas gavetas.

o problema todo se configurou, veja só, quando a atiradora de facas, nossa velha conhecida, percebeu que não gostaria de entregar, assim tão facilmente, como um mero menino de jornais o globo, a qualquer um da rua, seus papéis amassados. existia um, em especial, que ela pretendia guardar: toda uma coleção, aliás. por mais que lhe doessem os ombros, aqueles cadernos (já não eram mais blocos de rascunho; assumiram uma conotação importantíssima, de cadernos) continham algo de si, imutável e perene: algo que se entrasse em contato com a atmosfera poderia explodir.


e como o velho dylan em meet me in the morning, a atiradora de facas esvaiu-se correndo daquela calçada suja, levando consigo cadernos, rascunhos, cânceres e sábados, enfiou-se no primeiro táxi que viu e partiu para são paulo. carregava consigo receitas para uma vida plena, poemas de jorge de lima e declarações de amor.