sexta-feira, 2 de abril de 2010

gabriel

- vocês conhecem o julio? ele parece ser um cara legal. se ele existisse, claro. o livro que a tia alice me deu conta a história dele e dos amigos dele, que descobrem que um grupo de gente safada, como diz a minha mãe, tava roubando dinheiro vendendo figurinhas. a tia alice me disse que eu tinha que ler esse livro. e ele é muito bom mesmo - eu queria ser o julio e viver tudo aquilo, de construir barraca no rio, espionar os outros, mandar prender; mas eu quero fazer filmes também. minha mãe saiu para beber com as amigas dela, a alice e a daniela. daqui a pouco elas chegam, e enquanto isso eu fico aqui, vendo filme. esse, no caso, é ruim - ontem, eu fui parar na sala da diretora, minha mãe foi chamada e eu não queria nada disso. acontece que eu sou o melhor aluno da sala. já ganhei até medalha de honra. e na hora de sair o boletim da primeira unidade, veio um sete em comportamento, porque a professora disse que eu não sei sociabilizar. e me mandou para a sala da mulher mais gorda daquele colégio: gorda, feia e tem uns óculos roxos horrorosos. e daí que eu fiquei com raiva: como assim aquela mulher se sente no DIREITO de tirar a minha medalha? eu gosto de ler, de ver filme e olha, aqueles garotos não são para mim. são idiotas. aí, mamãe, tia alice e tia daniela chegaram. vou fingir que tô dormindo, porque aí dá para escutar tudo que elas dizem. (eu sempre faço isso) (uma vez, eu escutei minha mãe dizendo que ela não gostava de mim quando eu nasci porque eu era feio. e porque ela era muito nova. vou dizer que chorei debaixo do travesseiro, pra ninguém ouvir. mas não tem problema, não, eu entendi depois: ela só tinha vinte e dois anos quando me teve e ninguém tem obrigação de gostar do outro, não, ainda mais filho pequeno que chora berra come caga. hoje eu sei o que ela passou, e eu gosto dela ainda mais por isso) elas tão falando da minha avó: ela morreu quando minha mãe tinha oito anos e ela morre de medo que isso aconteça com ela. vou reproduzir:

tia alice (que fala alto e tem a voz parecida com a de uma menina da minha sala) - você não pode transferir o teu trauma para o seu filho; primeiro, você paga um analista, resolve tuas pendengas com teu passado e depois você conversa com o gabriel.

minha mãe - mas eu não quero que ele sofra!

tia daniela (ri que nem uma sapa maluca) - mas a vida é tomar no cu todos os dias, é a nota que veio vermelha, a menina que gosta do teu amigo, o marido que te larga, o aborto que tu fez, a porra do chefe que te demite. é isso. botou no mundo, é pra sofrer.



minha mãe parece criança que não entende isso. eu entendo! ela fica querendo me proteger demais, mas eu já sou crescido. pego ônibus sozinho, compro entrada do cinema sozinho, vejo filme sozinho e volto pra casa sozinho. teve uma época que eles se separaram, meus pais, e minha mãe trabalhava dois turnos - e eu me virei sozinho. ela me ensinou tudo. (até hoje acho que eles não deviam ter voltado. minha mãe ama meu pai, mas amor de amigo, que nem eu amo minha prima cláudia, que mora lá longe, n'outra cidade) (já ouvi minha mãe dizendo que meu pai não é o amor da vida dela)