Não sei e nem me atrevo a definir o que é arte. Sei do que sinto e sei quando bate - quando machuca, quando trava a língua e quando arde. Na teoria, fazer um filme deveria reunir todas as seis grandes artes; é a única forma, para mim, capaz de juntar pintura, literatura, teatro, música, e ainda assim dar certo (quando dá). E no caso de Se nada mais der certo, do Belmonte, dá até demais. Dá certo até de faltar o ar.
A trama é simples: um jornalista cheio de ideais mas desempregado, que sustenta - mais que isso, ele é a força que faz essa mulher viver - uma anoréxica junkie e seu filho, não porque seja apaixonado por ela, mas porque foi educado a ter solidariedade, esse tão estranho sentimento. Com o dinheiro escorrendo pelo ralo e o desespero rangendo a porta e cortando a luz, Léo sai para tentar alguma coisa, quiçá um milagre. E encontra o travesti Cibele e seu vapor, a doce, masculina e doída Martin. Cansado de escrever matérias inúteis sobre pré-estréias & celebridades & barracos quando queria salvar o mundo e acabar com a corrupção e toda a podridão humana, Léo se agarra sem perceber à trambiqueira Martin e ao amigo dela, o taxista Wilson.
Uma citação de Rousseau abre o filme e diversas vezes eles tocam no ponto da distribuição social - pobres contra ricos, ideais contra dinheiro -, mas o buraco é mais baixo. É tentar viver e não conseguir. Léo é um cara maneiro. Martin também. Assim como Wilson. Eles não são favelados, nem "cria do sistema". Martin foi abandonada pela mãe, criada por um travesti e recita "As Flores do Mal", do Baudelaire, assim como não quer nada. Eles tampouco são psicopatas como o Zé Pequeno. São apenas números na estatística do IBGE, assim como eu, como você.
Existe uma convenção na construção de roteiros que manda sempre existir um conflito. Os personagens precisam caminhar para esse conflito. Se ele será resolvido ou não, depende da sua filosofia cinematográfica. Mas existem aqueles narradores de história que tecem o roteiro como a vida é - repleta de conflitos e ações que se transfomam em outros conflitos, e à medida que resolvemos um, outros aparecem. O que nos angustia em Janela Indiscreta não é o fato do homem ter matado ou não a mulher - dane-se a mulher -, mas se a nossa querida Grace Kelly irá sair com vida, se o nosso L. B. irá conseguir provar sua louca teoria, e por aí vai. Nós fluimos com o filme, e vivemos com ele por duas horas.
Essa é uma das inúmeras belezas de Se nada mais der certo: você anda com o filme. Você sofre. Você sente que a situação está piorando - mas nunca, nunca ela parece forçada. Nunca é uma situação dita como "escolha estúpida" (sabe filme de terror, em que a/o protagonista sempre toma as PIORES decisões?). Roteiro impecável.
A fotografia é suja, como as cidades são sujas, e como aquele tempo em especial estava impregnado de sujeira - 2006, Lula versus Alckmin. Importante salientar: Belmonte é cria de Brasília. A lama está no ar, escorrendo pelos postes, entrando pelos fios do telefone. A trilha sonora é um caso à parte. O uso dos Saltimbancos (sim, sim, do Chico Buarque com a Nara e a Bebel) foi um dos melhores casamentos entre cinema e música desde Scorsese e Rolling Stones, logo no primeirinho filme do mestre, Ligações Perigosas.
Alguns críticos chamaram a obra de existencialista - tenho medo desse palavrão espantar espectadores. É uma obra, digamos assim, que lança a seguinte pergunta na garganta: será que eu vivo?