- essa cicatriz foi de quando tentei me depilar em casa, sozinha, pela primeira vez. a lâmina da gilete estava solta e fez esse rasgo. passa a mão para você ver.
Ele levantou o indicador direito: parecia um rio seco de carne na pele.
- é fundo.
- fiquei com tanta vergonha de chamar minha mãe – ou talvez não houvesse ninguém em casa -, e sentei embaixo do chuveiro esperando o sangue terminar de correr.
[ em um outro lugar, anos mais tarde, manuela iria se encontrar esperando a água correr, em outro chuveiro, não um qualquer, mas outro. ventava muito por ali. ]
Ele passou a mão pelo corpo, à procura de um passado interessante à altura de uma primeira depilação banhada em sangue.
- não tenho a ponta do dedo médio.
Ela pensou em replicar com uma piada, mas pouco fez além de levantar a sobrancelha.
Foi um homem, três anos atrás. Se conheceram, se amaram, dividiram o azul: mantiveram as bocas em segredo. Tinham medo – de si e dos outros -, tinham raiva – a maré estava tão cheia naquele verão -, tinham vergonha.
As paredes brancas muito brancas atingiram tal nível de claustrofobia que já não dava mais contar estrelas. Se antes Henrique transformava água em mar, agora era rio seco.
Um amanhecer, Eduardo decidiu parar de fumar. Sem adesivo nem nenhuma ilusão polishop – jogou tudo fora. Também quis ficar saudável e matriculou os dois na aula de squash.
Macho não lembra data nem ganha flor, mas Henrique sabia da terça-feira, oito de novembro de mil novecentos e noventa e oito – a.k.a. o ano em que todo mundo se fodeu -, 18º, São Paulo, de acordo com o Jornal Hoje. Foda-se a aula de squash: ficou em casa, abriu a garrafa de uísque e ligou o computador. O porteiro avisou que “aquele seu amigo” estava aqui.
Porque TODO MUNDO sabe. Ninguém comenta na cara. Mas por trás todo mundo é macho. Tem que saber. Tem que ter cu. Tem que ter cara. Não. Não é obrigação. Não é satisfação.
Foi uma vez só: a raquete levou a unha, a ponta do dedo e a garrafa. Era vagabunda, pelo menos. Henrique não foi ao hospital: virou pó de desejo, pó de sonho, pó de nada e o nada invadiu e tomou tudo, até o rio tietê. Waterloo foi aqui.
Ela o abraçou, mas por isso ele não precisava. Compaixão barata (obviamente omitiu o barata). Para resolver o silêncio, disse que a bunda dela era maravilhosa. Ambos sabiam da mentira. Mas decidiram acreditar naquela noite, como um pacto de cicatrizes. Como aqueles casamentos de Las Vegas que só valem em Las Vegas.